segunda-feira, 9 de março de 2009

A DISTÂNCIA ENTRE NÓS - Thrity Umrigar

O pensamento é imediatamente acompanhado por uma dor surda debaixo do ombro. É uma dor que não existe, sabe disso, uma dor psicossomática, mas mesmo assim sente doer. (...) Talvez o corpo tenha a sua própria memória, como as linhas invisíveis dos meridianos de que os acupunturistas chineses sempre falam. Talvez o corpo não perdoe, talvez cada célula, cada músculo e cada fragmento de osso se lembrem de cada golpe e cada ataque sofrido. Talvez a dor da memória esteja codificada na nossa medula, e cada sofrimento rememorado navegue na nossa corrente sanguínea como um seixo duro e negro. Afinal, o corpo, como Deus, anda por caminhos misteriosos.

O corpo que habitamos e que usamos como um casaco desde o nascimento (e mesmo antes do nascimento) continua sendo um estranho para nós. No fim das contas, quase tudo o que fazemos na vida é para o bem-estar do corpo: tomamos banho todos os dias, escovamos os dentes, penteamos o cabelo, cortamos as unhas; trabalhamos em empregos desinteressantes para podermos comer e nos vestir; nos esforçamos para protegê-lo da dor, da violência e do dano. E, no entanto, o corpo permanece um mistério, um livro que nunca lemos. (...)

Como é que, apesar da dedicação de uma vida inteira ao nosso corpo, nunca nos vimos cara a cara com nossos rins, como reconheceríamos nosso próprio fígado se o víssemos misturado a outros, e como podíamos nunca ter visto nosso coração ou nosso cérebro? Sabemos mais sobre as profundezas do oceano, estamos mais familiarizados com locais remotos do espaço sideral do que com nossos órgãos, músculos e ossos. Então, talvez não existam dores imaginárias. Talvez todas as dores sejam reais, talvez cada golpe de muito tempo atrás sobreviva pela eternidade sob alguma forma ou numa permutação diferente. Talvez o corpo seja essa entidade hipersensível e vingativa, um livro de contabilidade, um inventário de indelicadezs e crueldades.

Mas, se isso é verdade, talvez o corpo também se lembre de cada gesto de bondade, de cada beijo, de cada ato de compaixão. Certamente essa é a nossa salvação, nossa única esperança, a de que a alegria e o amor estejam também entremeados no tecido do corpo, no vigor de cada músculo, no cerne de cada célula pulsante.

(págs. 110-111)

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