domingo, 5 de abril de 2009

RETRATOS DE AMOR - Rubem Alves

O ouvido é feminino, vazio que espera e acolhe, que permite ser penetrado. A fala é masculina, algo que cresce e penetra nos vazios da alma.

O corpo é um lugar maravilhoso de delícias. Mas todo amor construído sobre as delícias do corpo tem vida breve. A chama se apaga tão logo o corpo tenha esvaziado do seu fogo. O seu triste destino é ser decapitado pela madrugada: não é eterno, posto que é chama.

Uma pessoa é bela, não pela beleza dela, mas pela beleza nossa que se reflete nela...

O amor vive neste sutil fio de conversação, balançando-se entre a boca e o ouvido.

O segredo do amor é a androgenia: somos todos, homens e mulheres, masculinos e femininos ao mesmo tempo. É preciso saber ouvir. Acolher. Deixar que o outro entre dentro da gente. Ouvir em silêncio. Sem expulsá-lo por meio de argumentos e contra-razões. Nada mais fatal contra o amor que a resposta rápida. Alfange que decapita. Há pessoas muito velhas cujos ouvidos ainda são virginais: nunca foram penetrados. E é preciso saber falar. Há certas falas que são um estupro. Somente sabem falar os que sabem fazer silêncio e ouvir. E, sobretudo, os que se dedicam à difícil arte de adivinhar: adivinhar os mundos adormecidos que habitam os vazios do outro.

Aqueles que se dedicam à sutil e deliciosa arte de fazer amor com a boca e o ouvido (estes órgãos sexuais que nunca vi mencionados nos tratados de educação sexual...) podem ter a esperança de que as madrugadas não terminarão com o vento que apaga a vela, mas com o sopro que a faz reacender-se.

(trechos das págs. 90-93)

sexta-feira, 3 de abril de 2009

O MONGE E O EXECUTIVO - James C. Hunter

As pessoas com problemas psicológicos sofrem muitas vezes do que eu chamaria de "doenças da responsabilidade".

Os neuróticos assumem responsabilidades demais e acreditam que tudo o que acontece é por culpa deles. "Meu marido é um bêbado porque sou má esposa", ou "Meu filho fuma maconha porque falhei como pai", ou "O tempo está ruim porque não rezei de manhã".

Pessoas com problemas de caráter, por outro lado, geralmente assumem muito pouco a responsabilidade por seus atos. Elas acham que tudo o que sai errado é por culpa de outra pessoa. "Meu filho tem problemas na escola por causa dos meus professores", ou "Não posso progredir na companhia porque meu chefe não gosta de mim", ou "Bebo porque meu pai bebia".

E ainda há os que ficam no meio, às vezes assumindo responsabilidades demais - os neuróticos -, às vezes de menos - os que têm problema de caráter.

(pág. 115)

domingo, 29 de março de 2009

ATRAVÉS DO ESPELHO - Jostein Gaarder

Nós enxergamos tudo num espelho, obscuramente. Às vezes conseguimos espiar através do espelho e ter uma visão de como são as coisas do outro lado. Se conseguíssemos polir mais esse espelho, veríamos muito mais coisas. Porém, não enxergaríamos mais a nós mesmos."

(Editora Companhia das Letras, pág. 125)

terça-feira, 24 de março de 2009

OS SOFRIMENTOS DO JOVEM WERTHER - Goethe

[primeira postagem feita em Catalão]

Tudo nos falta quando faltamos a nós próprios.

(pág. 55, Ed. Martin Claret, 2006)


Leio algum poeta antigo, e é como se estivesse lendo o meu próprio coração.

(pág. 87)


Ah, se eu fosse um maluco, poderia jogar a culpa no tempo, em outra pessoa, num projeto fracassado, e assim o peso insuportável da minha dor poderia ser dividido. Que desgraçado sou: sei perfeitamente que sou o único culpado... Não exatamente culpado, mas é em mim que está a fonte de todos os meus males, como outrora a fonte de toda a minha felicidade.

(pág. 84)


Esses tolos não vêem que a posição não tem a mínima importância, porque aquele mesmo que ocupa o primeiro lugar raramente desempenha o principal papel! Quantos reis são governados pelo seu ministro e quantos ministros são governados pelo seu secretário! Quem é então o primeiro? Ao que me parece, aquele que, vendo mais longe do que todos nós, é bastante poderoso ou bastante astuto para dirigir as nossas faculdades e as nossas paixões no sentido da realização dos seus planos.

(pág. 65)


sábado, 14 de março de 2009

A FELICIDADE, DESESPERADAMENTE - André Comte-Sponville

Se não somos felizes, nem sempre é porque tudo vai mal. Também acontece, e com maior frequência, não sermos felizes quando tudo vai mais ou menos bem, pelos menos para nós. Penso em todos os momentos em que nos dizemos "tenho tudo para ser feliz". Só que não basta ter tudo para ser feliz... para sê-lo de fato.

O que nos falta para sermos felizes, quando temos tudo para sermos e não somos? O que nos falta é a sabedoria, em outras palavras, saber viver, no sentido em que Montaigne dizia que "não há ciência tão árdua quanto a de saber viver bem e naturalmente essa vida". Essa ciência é antes uma arte ou um aprendizado: trata-se de aprender a viver.

Aprender a viver? Seja. Mas então não podemos evitar o verso de Aragon: "Quando aprendemos a viver, já é tarde demais..."

É isso: filosofar serve para aprender a viver, se possível antes que seja tarde demais, antes que seja absolutamente tarde demais. Nunca é "nem cedo nem tarde demais para filosofar", já que nunca é nem cedo nem tarde demais para "assegurar a saúde da alma", em outras palavras, para aprender a viver ou para ser feliz.

No fundo, o que é ser feliz? Ser feliz é ter o que se deseja. Não necessariamente tudo o que se deseja, porque nesse caso é fácil compreender que nunca seremos felizes e que a felicidade, como dizia Kant, seria um ideal não da razão mas da imaginação.

Ser feliz não é ter tudo o que se deseja, mas pelo menos uma boa parte, talvez a maior parte, do que se deseja. Seja. Mas, se o desejo é falta, só desejamos, por definição, o que não temos. Ora, se só desejamos o que não temos, nunca temos o que desejamos, logo nunca somos felizes. Não que o desejo nunca seja satisfeito, a vida não é tão difícil assim. Mas é que, assim que um desejo é satisfeito, já não há falta, logo já não há desejo.

Assim que o desejo é satisfeito, ele se abole como desejo: "O prazer", escreverá Sartre, "é a morte e o fracasso do desejo". E, longe de ter o que desejamos, temos então o que desejávamos e já não desejamos. Como ser feliz não é ter o que desejávamos mas ter o que desejamos, isso nunca pode acontecer (já que, mais uma vez, só desejamos o que não temos). De modo que ora desejamos o que não temos, e sofremos com essa falta, ora temos o que, portanto, já não desejamos - e nos entendiamos, como escreverá Schopenhauer, ou nos apressamos a desejar outra coisa.

Lucrécio, bem antes de Schopenhauer, dissera o essencial: "Giramos sempre no mesmo círculo sem poder sair... Enquanto o objeto de nossos desejos permanece distante, ele nos parece superior a todo o resto; se ele é nosso, passamos a desejar outra coisa, e a mesma sede da vida nos mantém em permanente tensão..."

A felicidade não é um absoluto, é um processo, um movimento, um equilíbrio, só que instável (somos mais ou menos felizes), uma vitória, só que frágil, sempre a ser defendida, sempre a ser continuada ou recomeçada.

(adaptado das págs. 19-29 e 88.)

segunda-feira, 9 de março de 2009

A DISTÂNCIA ENTRE NÓS - Thrity Umrigar

O pensamento é imediatamente acompanhado por uma dor surda debaixo do ombro. É uma dor que não existe, sabe disso, uma dor psicossomática, mas mesmo assim sente doer. (...) Talvez o corpo tenha a sua própria memória, como as linhas invisíveis dos meridianos de que os acupunturistas chineses sempre falam. Talvez o corpo não perdoe, talvez cada célula, cada músculo e cada fragmento de osso se lembrem de cada golpe e cada ataque sofrido. Talvez a dor da memória esteja codificada na nossa medula, e cada sofrimento rememorado navegue na nossa corrente sanguínea como um seixo duro e negro. Afinal, o corpo, como Deus, anda por caminhos misteriosos.

O corpo que habitamos e que usamos como um casaco desde o nascimento (e mesmo antes do nascimento) continua sendo um estranho para nós. No fim das contas, quase tudo o que fazemos na vida é para o bem-estar do corpo: tomamos banho todos os dias, escovamos os dentes, penteamos o cabelo, cortamos as unhas; trabalhamos em empregos desinteressantes para podermos comer e nos vestir; nos esforçamos para protegê-lo da dor, da violência e do dano. E, no entanto, o corpo permanece um mistério, um livro que nunca lemos. (...)

Como é que, apesar da dedicação de uma vida inteira ao nosso corpo, nunca nos vimos cara a cara com nossos rins, como reconheceríamos nosso próprio fígado se o víssemos misturado a outros, e como podíamos nunca ter visto nosso coração ou nosso cérebro? Sabemos mais sobre as profundezas do oceano, estamos mais familiarizados com locais remotos do espaço sideral do que com nossos órgãos, músculos e ossos. Então, talvez não existam dores imaginárias. Talvez todas as dores sejam reais, talvez cada golpe de muito tempo atrás sobreviva pela eternidade sob alguma forma ou numa permutação diferente. Talvez o corpo seja essa entidade hipersensível e vingativa, um livro de contabilidade, um inventário de indelicadezs e crueldades.

Mas, se isso é verdade, talvez o corpo também se lembre de cada gesto de bondade, de cada beijo, de cada ato de compaixão. Certamente essa é a nossa salvação, nossa única esperança, a de que a alegria e o amor estejam também entremeados no tecido do corpo, no vigor de cada músculo, no cerne de cada célula pulsante.

(págs. 110-111)